Acho que fui das crianças mais responsáveis que alguma vez houve neste planeta!
Com apenas 6 anos, quando chegou a altura da escola primária e das actividades extracurriculares, o meu pai disse:
"Inês, este é o caminho para a escola e este é o caminho para a escola de música, a partir de hoje estás por tua conta. Vais de manhã, vens almoçar a casa e à tarde voltas a casa ou vais para a escola de música a estas horas. E sem atrasos! Porque não fica bem chegarmos atrasados a lado nenhum, ouviste?"
E como eu sempre tive um medo terrível de ver o meu pai zangado, ou pior, desiludido comigo, fiz sempre de tudo para levar os seus conselhos muito a sério. É bom pai, mas muito autoritário.
E só para verem como eu não estou mesmo nada a exagerar, prestem atenção...
A nossa casa na Golegã ficava no primeiro andar do posto da GNR porque o meu pai era o comandante (vai-se lá perceber isto). Por isso ele sabia sempre quando eu chegava a casa. Ou ouvia ou os outros guardas (traidores =)) o avisavam.
Houve um dia em que eu cheguei a casa, num horrível dia de chuva, com o meu pequeno chapéu-de-chuva amarelo (que saudades daquele chapéu) e com a minha pequena mochila verde e azul do sapo da nico, completamente encharcada dos pés à cabeça.
O meu primeiro pensamento foi: "Se me despachar a secar tudo e a trocar de roupa pode ser que o meu pai não ralhe tanto.".
Ele odiava que eu me molhasse. Nem que fosse apenas a ponta dos sapatos.
Vocês devem de estar a pensar que o meu pensamento mais lógico seria secar tudo e trocar de roupa para que ele nem reparasse sequer, e não ficar à espera de raspanete mesmo que fosse mais leve.
Mas eu sabia bem que o meu pai sabia que estava a chover e que eu vinha a pé. As probabilidades de me molhar eram grandes e ele iria perguntar-me se eu não dissesse nada.
E era completamente impensável tentar mentir ao meu pai. E completamente impossível.
Ele detectava sempre e ia acabar por me dar um castigo ou pior.
Pois bem, tive pouca sorte e comecei a ouvir os seus passos nas escadas. Não havia nada a fazer. "Ia apanhar uma sova na certa." pensei eu. Fiquei completamente quieta à espera de ver a maçaneta da porta rodar.
E quando aconteceu, o meu pai entrou.
Olhou instantaneamente para o barulho ensurdecedor do aquecedor-secador com os livros, cadernos, mochila e sapatos a secar e depois olhou para mim.
No momento em que as suas sobrancelhas começaram a arquear, até ao ponto de quase ficarem em linha vertical, eu, simples e directamente falando, "mijei-me" pelas pernas abaixo!!
Acho que foi dos episódios mais aterradores de que me lembro.
Mas sabem que mais? Não aconteceu nada.
Acabei por me safar de uma boa sova e do castigo.
Bom, não me safei do raspanete, que acabou por se direccionar mais por sujar o tapete de xixi do que propriamente pela molha. Mas acabou tudo em bem. Yééé.
Quando relembramos esta história lá em casa o meu pai defende a sua posição dizendo que eu estava sempre até às últimas para fazer xixi e que qualquer dia isso ia acabar por acontecer.
Não está totalmente errado. Eu estava mesmo até às últimas para ir fazer xixi quando estava a fazer algo divertido.
Mas, claro está, que a forma como ele se ia transformando num ogre verde, cheio de sobrancelhas e bolhas volumosas, ia fazer qualquer criança fazer xixi num tapete, como um cachorrinho, mesmo sem qualquer vontade.
Mas voltando às responsabilidades... Não pensem que as minhas responsabilidades acabavam quando eu chegava a casa. Havia uma outra regra.
Chegava a casa, lanchava (e enquanto lanchava podia ver televisão) e logo a seguir ao lanche ia fazer os trabalhos de casa para depois ele os corrigir.
Claro que eu prolongava sempre o meu lanche até ter terminado a hora dos desenhos animados.
A não ser, claro, que o meu pai me ouvisse no andar de baixo e decidisse que estava na hora de ver se estava tudo bem.
Ele chegava e dava-me a cara para eu o cumprimentar com um beijo e perguntava sempre "Como foi a instrução?" (Mesmo à militar se querem saber. Quem é que chama instrução à escola?)
Eu respondia-lhe sempre que tinha corrido tudo bem e que tinha acabado de lanchar e ia fazer os trabalhos de casa.
Ele não era tonto nenhum, como já devem ter percebido. Mas, por alguma razão inexplicável, deixava sempre passar essa. Talvez percebesse que depois daquela hora já não haviam mais desenhos animados.
E comentava sempre o que eu via. "É só isto que tu vês? Violência?" e eu respondia "Não é violência, papá. É o dragonball!". À qual ele respondia sempre "É violência! Estão sempre a atacar-se uns aos outros. Eu nem devia deixar-te ver isso, mas pronto".
Nem sei bem porque dizia aquilo, porque na hora de almoço, antes de dar sempre a Cinderela que eu adorava ver, o meu pai delirava a ver o Zorro.
E isto passava-se todos os dias da semana, excepto os dias em que ia para a natação ou para a música (que pensando bem eram quase todos). E às vezes, às sextas-feiras, quando podia fazer os trabalhos no fim-de-semana, ia para o posto da GNR chatear os guardas ou vê-lo trabalhar na sua grande secretária.
Meu Deus, eu ADORAVA vê-lo trabalhar. Ele não gostava muito que eu ficasse especada a olhar para ele e aborrecia-se facilmente. Mas antes que isso acontecesse e me expulsasse dali como um mosquito, eu aproveitava todos os momentos em que podia ficar perto dele a idolatrá-lo.
Mais tarde ele arranjou uma mini secretária no outro canto da sala (o mais longe possível da sua enorme secretária) para que eu pudesse sossegar e ficar lá a escrever ou a desenhar. Ou a imitá-lo (secretamente).
É estranho pensar que um homem tão rígido e inflexivel como o meu pai seja um grande modelo para mim de alguma forma.
A sério!
Ainda hoje é.
Continuo a gostar de vê-lo trabalhar (hoje já não como GNR mas como empresário de táxis). Continuo a achar a sua forma de gestão e as suas competências de adaptação ao mundo à sua volta incríveis.
Enfim, vou continuar a trabalhar para o dia em que ele se orgulhe de mim de verdade.
Até lá, posso apenas observar como sempre fiz...